sábado, 24 de junho de 2017

OS LIMÕES DA VIDA E O DIA EM QUE ANDEI NUMA MEIA MARATONA

Três meses. Esse foi o tempo que treinei – muito irregularmente – para ir de meio paradona a uma meia maratona. A Meia Maratona Internacional do Rio de Janeiro/2017. É claro, então, que não tinha como estar adequadamente preparada. Mas fui assim mesmo, com a cara, a coragem e os meus fartos quilos extra.
Ao se aproximar a data da corrida, como de costume, fiquei pensando em alguém para dedicar a corrida e a medalha. Escolhi a Janet Sidy Donio – ou simplesmente Jan, minha amiga e companheira de trabalho voluntário no Terapia Cão Carinho. Uma pessoa que eu já admirava bastante e que ultimamente aprendi a admirar muito mais.
A Jan é uma profissional bem-sucedida que vive viajando a trabalho. Uma moça bonitona e cheia de vida, ativa, alegre, sensível, generosa. Do tipo que está sempre de bem com a vida e vai resolvendo problemas e vencendo obstáculos – pequenos ou grandes – sem fazer estardalhaço. E é exatamente assim que ela continua, agora que teve câncer de mama, foi operada e está passando por quimioterapia.

Dia desses, ela postou no Facebook umas fotos de tirar o fôlego – ela e uma amiga fazendo stand up paddle ao por-do-sol, em Fortaleza.

E uma foto dela na praia, olhando aquele entardecer lindo. Ela, de costas, absolutamente careca. Absolutamente linda.

E a descrição da postagem: fazendo do limão uma limonada.





(Foto da internet)
Eu acho que a Jan foi muito além de fazer uma limonada com os limões da vida. Ela faz – e distribui aos amigos – caipirinha, mousse, torta, bolo de limão, e sei lá o que mais de gostoso que o limão pode virar, quando se acrescentam ingredientes escolhidos com o coração. Esse deve ser um processo nem sempre fácil e muito menos divertido, mas fato é que a Jan adoça nossas vidas com os limões que a vida dá para ela.

Tentando me inspirar nesse exemplo, resolvi dedicar esta meia maratona à Jan. Sim, consciente de toda a minha falta de preparo.

x-x-x


Eu tinha acreditado na previsão do tempo que prometia uma manhã de temperatura amena e estava me sentindo muito bem no início da corrida. Por isso, puxei um ritmo acima do que vinha treinando ultimamente. Como sempre, a cada marca de km eu agradecia mentalmente aos meus treinadores, professores Alexandre de Andrade e Nelson Evêncio.  E depois, “falava” com a Jan: Tá aí, mais um quilômetro pra você!

Lá pelo km 4, apesar de estar correndo sem sofrer, comecei a desconfiar que a previsão teria errado grosseiramente, pois sentia muito calor. Quando caí na real que estava mesmo muito quente, já estava no km 15 e embora tenha feito uma corrida bem satisfatória para as minhas condições atuais, estava muito cansada e talvez um pouco desidratada.
Parei cerca de um minuto para tomar água e descansar e pensei que poderia retomar o ritmo. Meu papo com a “minha Jan interior” foi: ficar mal depois de uma sessão de quimio deve ser assim... Você acha que não vai aguentar, aí você para, descansa um pouco e em seguida retoma a vida, certo?
Errado. Comecei a correr, mas não deu para manter o ritmo. Em outras épocas, teria mantido um trote até voltar a me sentir melhor e acelerar de novo. Mas desta vez tinha um quê de conformismo: eu não estava mesmo preparada para muito mais do que 15 km. Escolhi, então, uma solução que nunca* antes tinha usado numa corrida: ANDEI.

(*Obs: esse "nunca" é quase verdade, porque no ano passado, durante a Maratona do Rio, andei uns 50 metros)

Eu me considerava uma ótima administradora de corridas – sempre consegui administrar meu ritmo de acordo com as condições do momento, minhas e externas. E me orgulhava de nunca ter andado numa prova de rua.

Mas desta vez foi bem assim: foda-se, vou andar mesmo. Afinal, eu não estou preparada mesmo. Desculpe, Jan... mas deve ter dias em que você faz isso também; dá uma andadinha porque correr fica difícil, né não? Aqueles dias em que os limões vêm um pouco mais azedos do que a média... ou talvez até meio amarguinhos...

(Foto: Foco Radical - editada)
Fui, então, alternando trote e caminhada até o final, falando com a minha Jan interior o tempo todo. Quando ficava muito difícil, eu me perguntava como a Jan contornava as situações mais complicadas e incertas na sua maratona particular contra o câncer. Ainda retomei o ritmo em mais dois quilômetros, o 18º e o 21º, e terminei correndo no meu limite.
Tudo isso deu um pouco menos de 2 horas e 35 minutos – o que não é nada brilhante para uma meia maratona. Talvez a Jan merecesse uma prova mais bem corrida e uma medalha mais decentemente conquistada. Mas foi uma experiência totalmente nova que me rendeu algumas observações:
  1. (É óbvio que) não se vai de meio paradona a meia maratona em três meses de treino indisciplinado.
  2. Andar, numa meia maratona, não mata ninguém. Muito pelo contrário, terminei bem viva e não tive dor nenhuma no dia seguinte (quero chamar isso de maturidade, hehehe).
  3. O limão e a corrida são mais legais quando, de alguma forma, são compartilhados com amigos. E os amigos, por sua vez, são os ingredientes que os tornam mais gostosos.

Por fim,.. Não é desmerecer uma amiga, dedicar uma medalha que eu fui buscar, a pé, por 21,100 km, seja correndo ou andando. Por isso, Jan, essa medalha é sua, com toda a minha admiração, respeito e gratidão.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

O NÚMERO DE PEITO COR-DE-ROSA

Se tem uma coisa que sou contra, no mundo da corrida (embora já tenha sido cúmplice uma ou outra vez), é participar de uma prova com a inscrição de outro corredor. Mas, como em tudo na vida, há exceções. Outro dia, me vi aplaudindo, emocionada, um corredor “incidental” com um número de peito que, sem dúvida nenhuma, não era seu.


Nilza. Esse era o nome no número de peito cor-de-rosa daquele corredor – um rapaz alto, perfil nada atlético, nitidamente acima do peso, para não usar palavras mais singelas que hoje em dia podem resultar em processo, sob rótulo de bullying.

Nilza. Esse era o nome de sua mãe, que, após travar brava luta contra um câncer de mama, veio a falecer dois dias antes daquele evento, justamente a Corrida e Caminhada contra o Câncer de Mama.
No ano passado, Nilza havia participado dessa caminhada ao lado de familiares e amigos que juntos lutavam aquela batalha que, até então, parecia ganha. E ela estava novamente inscrita este ano, assim como seus outros dois filhos e várias pessoas de sua abençoada família. A equipe se chamaria "Vai Nilza", tinha comentado há algum tempo o meu personal trainer e grande amigo, professor Alexandre de Andrade, irmão caçula da Nilza.

Eu tive pouco contato com a Nilza. Durante a sua doença, tinha notícias sempre por meio do professor Alexandre. Mas nunca a visitei pessoalmente. Em duas ocasiões, mandei objetos simbólicos a título de incentivo: a medalha da São Silvestre de 2014, uma prova que foi muito difícil por eu estar sem treino, e uma “injeção de ânimo” – uma seringa com um papelzinho dentro, escrito “ânimo!”. Essa injeção, soube tempos depois pelo Alexandre, que a Nilza carregava sempre na bolsa...


Ultimamente, a cada notícia de piora e de recuperação, eu me perguntava o que faz uma mulher ser tão guerreira e tão forte. Vontade de viver, sem dúvida. Mas não é o suficiente para passar por tantas situações: como médica, sei disso. Força e apoio de uma família unida? Haja força, haja união. Fé? Poxa... haja fé, pensava.

Na sexta-feira à noite, eu tinha ido ao seu velório. Tristeza indescritível. Doía-me o peito, de ver a dor das pessoas. Mas havia também algo de sereno naquelas pessoas. Acho, também, que era fé.
Não consegui ir ao enterro, que foi no sábado. Lembrei-me da corrida do dia seguinte e me ocorreu que eles pudessem ir, mas fiquei com a hipótese mais provável de que todos estariam tristes demais, além de obviamente cansados para se levantarem cedo num domingo muito frio.
Eu havia perdido a inscrição para essa corrida; então, só fui com a intenção de assistir e fotografar. E nem procurei saber se o Alexandre e a família estavam lá.
Pois, estavam. Lacinho preto no peito ou no braço, lágrimas e sorrisos nos rostos abatidos, estavam lá. Unidos como nunca. Fortes.
Soube que o Alexandre tinha terminado sua corrida de 5 km e partido novamente pelo percurso para encontrar os filhos e sobrinhos da Nilza que ainda estavam caminhando. Segui, então, em sentido contrário ao da chegada, para ir de encontro com eles. A corrida já estava sendo encerrada e o staff retirava os apetrechos do percurso e a CET estava prestes a liberar o trânsito da via bloqueada.
De longe, avistei a turma chegando. Arrepiei. O professor Alexandre, os três filhos da Nilza e dois sobrinhos, correndo juntos. Alguns esbaforidos, outros nem um pouco, semblantes que mesclavam sorriso com o sofrimento da saudade e da falta de fôlego de quem não costuma correr.


Quando se aproximaram, gritei o mais alto que pude: "VAI NILZAAAA!!" Em resposta, eles se deram as mãos e levantaram os braços, todos juntos. Enxerguei, então, o número de peito cor-de-rosa da Nilza brilhando no peito de um dos filhos. Chorei.


Aquela imagem, pensei, era a essência do que a Nilza gostaria: sua família sempre unida e forte, animada, lutando, sorrindo. Seu nome – ali representado pelo número de peito cor-de-rosa no peito de um corredor sem inscrição – brilhará para sempre, no peito dos seus filhos e de todos aqueles que Deus inscreveu em alguma parte da sua história.

Vá em paz, Nilza. Aqui estamos inscritos na Vida e continuaremos nossa corrida por ela, com o seu número de peito cor-de-rosa em nossos corações. E a medalha é sua, pois você completou com louvor a sua caminhada.










terça-feira, 5 de janeiro de 2016

O MAIOR PRESENTE DE ANO NOVO - Onde a medalha da São Silvestre ganha sentido

Existem poucas coisas mais egoístas e narcisistas do que correr. Claro, não estou falando daquela pessoa que corre e, por correr, inspira outros, incentiva, contamina, e por isso, o ato de correr deixa de ser egoísta. Estou falando do fato de cada corredor buscar sua própria meta, correr pela própria medalha.
Eu corro pelo meu bem-estar, pelo meu prazer, pela minha sensação de conquista, pela minha superação. Eu treino para melhorar o meu jeito de correr e corro uma prova para testar a minha melhora. Sou eu comigo mesma, brigando com a minha preguiça, minha falta de fôlego, minhas dores, minha tendência depressiva, minha falta de vergonha na cara. Sou eu comigo mesma, tentando tempos menores, distâncias maiores, provas mais desafiantes. Isso é incontestavelmente recompensador e não há nada de errado em fazer da linha de chegada e da medalha – pendurada orgulhosamente no pescoço, beijada, mordida e mil vezes fotografada – os objetivos finais de um esforço. Afinal, ambas são méritos meus.
Mérito, no entanto, é uma recompensa egoísta. E então... Como ir além do simples mérito? Como ir além da linha de chegada e fazer com que a medalha tenha um pouco mais de sentido do que ser esquecida numa caixa de sapatos?

De uns tempos para cá, quando participo de uma prova de rua, além de tentar sempre curtir a corrida toda, passei a querer um pouco mais do que simplesmente cruzar a linha de chegada e pegar a medalha.
Passei, então, a “dedicar” cada corrida a alguém. A alguém que nem sempre é um amigo íntimo, ou que está lutando ou lutou contra um câncer (apesar de ser a maioria), ou mesmo alguém que entende o que significa exatamente correr uma prova de rua. Mas é sempre alguém por quem eu tenho um grande apreço, um carinho especial. E as medalhas, então, em vez de ficarem penduradas na parede de casa, passaram a simbolizar cada dedicatória. E, assim , tenho aumentado muito pouco a minha coleção de medalhas (sim, algumas eu ainda guardo) e venho aumentando a coleção de histórias para contar – ou não.

Até alguns dias antes da última São Silvestre, eu não conseguia enxergar assim, perfeitamente, uma pessoa com a minha medalha. Faltando dois dias, me lembrei da Ana, jovem profissional de Educação Física, uma das auxiliares do professor Nelson Evêncio, meu treinador.
Eu nunca vi a Ana correr, nem tampouco comentar sobre alguma corrida que tenha participado. Atualmente, a Ana nem ao menos treina corrida. Nas sessões de alongamento após os treinos longos de sábado, fui descobrindo, aos poucos, o porquê. Ana divide com sua irmã a árdua tarefa de cuidar de um pai com doença de Alzheimer, 24 horas por dia. Pelo pai, deixou de trabalhar diariamente como estava acostumada. E, pelo pai, vai saber do que mais abre mão, todos os dias de sua vida. Diz que cuidar dos pais é dever e cumpre esse dever com naturalidade e dignidade como poucos. Com empenho e alegria impressionantes. Fala desse pai com uma paixão que transcende qualquer tipo de amor. E então, a Ana não tem tempo de treinar. E então, imaginei, a Ana nunca correu uma São Silvestre. E então, olha que legal, vou dar a minha medalha para a Ana!
Bem... Fiquei super feliz de ter me lembrado da Ana, mas devo fazer uma ressalva aqui. Acredito que a medalha da São Silvestre, assim como a própria corrida, tenha um peso maior na história da maioria dos corredores. Confesso: na minha, tem. Eu sou daquela metade da população corredora que ama a São Silvestre (a outra metade odeia) e ela sempre vai ter lugar de destaque entre as corridas pelo ano afora. Das cinco vezes que corri, três medalhas foram doadas, mas confesso também que gosto bastante delas. Há alguns anos, até usei a foto da medalha como foto do meu perfil do Facebook (hoje acho um pouco ridículo, hehehe). Por isso, humana e materialista que sou, não é a coisa mais fácil do mundo simplesmente “dar” a medalha da São Silvestre para alguém, mesmo que seja alguém muito especial e admirável como a Ana.
Resolvi, então, fazer uma proposta. Uma barganha, que, ao mesmo tempo, serviria de incentivo. A Ana fica com a minha medalha da São Silvestre 2015 até ela correr alguma – não importa quando -, e quando ela tiver a medalha dela, me devolve esta, ou me dá a dela.
A Ana tinha dito que, este ano, ela iria assistir e torcer pelos amigos, bem no final da famosa subida da Brigadeiro (só para lembrar: é muito difícil para a Ana ficar muitas horas fora de casa, por causa dos cuidados com o pai). Aliás, a Ana sempre vibra muito com cada corrida de que os alunos participam, sempre se diz orgulhosa deles e dá o maior incentivo! E a turma ficou de se encontrar depois, para uma confraternização e para comemorarmos o aniversário do nosso treinador. Oba, pensei, está aí a chance de entregar a medalha para ela e fazer a proposta. Com testemunhas, melhor ainda.

Amigos da Assessoria e o prof. Nelson Evêncio
(foto: Nelson Evêncio)

A corrida foi um tanto sofrida para mim. Para começar, não estava mesmo suficientemente preparada para fazer uma São Silvestre com folga. Depois, fez um solzão que não estava previsto. O que me salvou foi o protetor solar que um amigo da mesma assessoria foi comprar de última hora e dividiu com os companheiros desavisados. Nos primeiros quilômetros da corrida, o congestionamento me impediu de desenvolver como gostaria; no meio, o sol pegou forte; no final, quando tinha mais espaço e poderia ir mais rápido, minhas pernas estavam muito cansadas. Mas lá estavam a Ana e o professor Nelson no final da Brigadeiro, gritando meu nome e me dando um gás extra para terminar a corrida.

 
Quando fui de encontro com eles no lugar combinado, a Ana me parabenizou com entusiasmo e me contou que, ao sair de casa, tinha mentido ao seu pai que estava indo correr a São Silvestre, que se ele visse na televisão uma “negona chegando na frente”, era ela. Meu Deus, as coisas não podiam se encaixar melhor: seria perfeito a Ana chegar em casa com uma medalha!
Proposta lançada! (foto: Alessandra Alves)
Minha proposta foi prontamente aceita. Promessa é dívida e a Ana ficou de me dar a medalha – dela – da São Silvestre 2016. Na verdade, eu não tenho pressa, desde que a proposta continue de pé, mas se ela se animar já para o próximo ano, tanto melhor!

O maior presente de Ano Novo: este sorriso!!
(foto: Ana V Rodrigues)

E, no dia seguinte, recebi o maior presente de Ano Novo que alguém poderia ganhar: o sorriso de um pai muito feliz, com a medalha – "da filha" – no peito.
Desnecessário dizer que a alegria de ver um pai orgulhoso e feliz foi infinitamente maior do que a alegria de cruzar, pela sexta vez, a linha de chegada da São Silvestre e pegar a medalha, como fizeram outros 23.267 corredores.

E, na minha sétima, Ana, quero estar com você!


Só para terminar, desejo duas coisas: que, cada uma das outras 23.267 medalhas tenha uma linda história para contar e que Deus me perdoe por estar me sentindo tão feliz enganando um velhinho indefeso! ;)







sexta-feira, 14 de outubro de 2011

CORRIDA E ALEGRIA DA VIDA, MINHA RIMA PREFERIDA

Memórias da 9ª Corrida Troféu Duque de Caxias – Hospital A. C. Camargo, 21 de agosto de 2011.

Meu caro professor Alexandre de Andrade, peço-lhe desculpas. Parei várias vezes na corrida de hoje. Espero que entenda a sua aluna – esta, que jura estar à procura da vergonha na cara, para voltar a correr mais seriamente, tentar reconquistar os 10 km abaixo de uma hora... Sim, estou tentando, de verdade, mas hoje, mais uma vez, não deu. Vou tentar me justificar.
****
A previsão do tempo acertou. Choveu no sábado e esfriou muito. Domingo fazia 9º C quando saí de casa rumo ao Ibirapuera, com vento e garoa como agravantes. Veio a calhar a camiseta oficial da corrida, verde vivo, grife conceituada, e o melhor de tudo, manga longa.
Bem... mas antes da marca do primeiro quilômetro eu já amaldiçoava a bendita manga comprida – sentia muito calor, apesar dos termômetros ali mostrarem 11º C.  A boca secava, a coxa esquerda rangia, o glúteo direito repuxava, a perna doía... Que droga ter 53 anos de idade, que droga ter engordado tanto! Me perguntava o que estava fazendo ali. Ah, sim, estava ali para tentar fazer os 10 km em menos de 1hora e 10 minutos, para quem sabe, até o fim do ano, desafiar uma abaixo de 1 hora.
Eis que, de repente, me chama a atenção um pescoço que ia correndo na minha frente. Um parêntesis: com os meus 1,48m, mesmo correndo conforme conselhos profissionais – corpo ereto, peito estufado, cabeça levantada –, é normal eu enxergar dos que vão adiante as costas, eventualmente a cintura, e na melhor das hipóteses, o pescoço. Aliás, o pescoço me atrai automaticamente, cirurgiã de cabeça e pescoço que sou. Voltando ao pescoço que ia indo à minha frente, além do cabelo quase totalmente branco que o encimava, observei nele algo que só cirurgiões de cabeça e pescoço e outros poucos reconheceriam: um protetor de traqueostomia *. Azul clarinho, daqueles com velcro atrás. Aliás, daqueles que só laringectomizado** usa. Não, não é possível. Veja bem, Sunao, vamos recapitular. Você está numa corrida, na manhã muito fria de um domingo. Com vento gelado e garoa. Sim, tenho certeza: estou no começo de uma corrida. Corrida de rua, de 10 km!! Como assim, um laringectomizado aqui?????
Corri mais rapidinho e olhei de esguelha. Inconfundível perfil de laringectomizado! Aquele pescoço que fica parecendo que só tem a metade de trás, porque a outra metade o cirurgião arrancou (supostamente, para tirar um câncer). Sim, um laringectomizado. Correndo! Fiquei emocionada, feliz, pensativa, intrigada, pra variar quase chorei, mas passei reto, com a certeza de ter sido hiperdiscreta. Mas logo depois, não aguentei. Olhei para trás, dane-se a discrição. Lá vinha o senhorzinho, não muito mais alto do que eu, cabelos e sobrancelhas quase brancos, óculos escuros, joelheira numa das pernas – e que pernas! Musculosas, de corredor de verdade! Não combinava, ali, apenas o babadorzinho azul da traqueostomia...

Deixei o senhorzinho me ultrapassar só um pouco e então, cara de pau assumida, abordei-lhe a lateral esquerda, saudando-o com o “Bom dia” mais simpático que consegui pronunciar. Apresentei-me como cirurgiã de cabeça e pescoço e disse-lhe que gostaria de usar o seu exemplo para incentivar meus pacientes. Ele fez que sim, sorrindo, surpresa estampada no rosto de um senhor distinto, mais pra vovô carinhoso. Fui um pouco adiante, perdi mais um pouco da minha discrição e tirei uma foto dele. E continuei no meu ritmo (não muito mais forte do que o dele), deixando-o para trás. Eu ainda queria fazer meus 10 km em 01:10.


Seguindo mais um pouco, achei um ótimo lugar para fazer mais fotos. Subi na mureta do canteiro central e fiquei trotando em círculo. Fiquei observando a expressão de cada corredor que passava, enquanto o Ipod tocava o primeiro movimento da fenomenal Nona de Beethoven. Um jovem meio gordinho, meio ofegante – vamos lá, ainda falta muito, moço! Um homem grisalho com aparência de gente muito séria. Chutaria que é um empresário e não saberia dizer se ele pensava nos problemas da empresa ou se estava apenas concentradíssimo no seu ritmo. Várias mulheres, de várias idades, várias vaidades – ainda em bom estado, pois a corrida estava no começo. Fiquei imaginando o que cada um teria usado como motivação para estar ali naquele frio.
Nessa hora, entrou no meu campo visual um cadeirante, impulsionando o seu veículo com (me pareceu, pelo menos) muito, muito esforço. Era uma cadeira de rodas normal, não aqueles bólidos que a gente vê nas paraolimpíadas. Faltava-lhe a perna direita. Pois é,... a mesma que, em mim, doía. Passei o Beethoven para o quarto movimento: Ode à Alegria. Combinava com tudo aquilo: a alegria de viver, certamente o motivo pelo qual todos estávamos ali – sem a laringe, sem a perna, ou com a laringe perfeita e a perna doendo... e sem vergonha nenhuma na cara.

O senhorzinho passou por mim; fotografei e segui atrás. Fotografei de novo. Ia ele, babadorzinho azul balançando ao vento, passos firmes, em meio a todo aquele povo aparentemente mais jovem e mais “normal” do que ele.
Eu já estava satisfeita de ter registrado na memória e no meu celular momentos tão especiais de uma corrida. Acelerei. Quem sabe, ainda dava tempo de buscar a minha 1 hora e 10 minutos?
Mais ou menos no quinto quilômetro, ultrapassei uma camiseta amarela, escrito bem grande nas costas: CEGO. A dona da camiseta era uma jovem muito bonita, corpo perfeito, cabelos longos em rabo de cavalo, postura elegantíssima. Se não fosse a guia amarrada a ela por uma cordinha e aquele rótulo enorme nas costas, jamais diria que ela não enxergava. Cobrei de Deus – indevidamente, eu sei: puxa vida, porque uma moça tão bonita não tem o direito de se enxergar? E eu que, por enxergar bem, vivo brigando com o espelho e com a balança... Bem, ainda assim, ela parecia feliz correndo, como eu. Como contar a ela que a camiseta amarela molhada de suor era tão linda quanto o ipê amarelo à beira do percurso, também molhado com a garoa da manhã?
Alguns metros mais, e outra camiseta amarela. De novo: CEGO. Um corredor baixinho, abaixo da média masculina. Ao lado, ligado por aquela cordinha, um corredor bem alto – acima da média – e aparentemente bem mais jovem. Mais “atlético”, digamos. A diferença de altura era gritante, e, unidos por uma corda bem curtinha, o rapaz mais alto parecia até meio envergado para acertar a altura de sua mão com a do outro. Muito provavelmente, aquele não era seu melhor ritmo. Poderia estar bem mais adiante, correndo livre, voando, tentando baixar seu tempo, satisfazendo seu ego. Mas ele estava lá, num ritmo tranquilo, guiando o corredor cego. Meu Ipod no modo random, tinha pulado de Beethoven para Elton John: “You’re butterfly/and butterflies are free to fly/Fly away,high away”Pensei, cada um tem seu jeito de ser free to fly!
Estava começando a terrível subida da Rubem Berta. Adoro subida, e, apesar de fora de forma, me animei. Ainda absorta na música, absorta na alegria de viver, acelerei novamente em busca do meu tempo. Quase no final da subida, vejo um termômetro enorme registrando absurdos 8ºC! Caraca, sabia que estava frio, mas não pensei que fosse tanto!
Foi aí que a minha proposta de fazer os 10 km em... quanto tempo era mesmo?... foi embora de vez. Foda-se o tempo, eu tenho coisa mais importante para aprender e curtir. Eu preciso – sim, PRECISO! fotografar o senhorzinho laringectomizado ao lado deste termômetro! Aliás, é uma foto dessas, feito painel bem grandão, que preciso pendurar em frente à minha cama. Para enxergar, mesmo sonolenta e sem óculos, toda vez que der vontade de não sair do edredon, seja lá para ir correr ou trabalhar. E, na hora que a vergonha chegar e conseguir me levantar, me colocar de joelhos à frente da foto e agradecer a Deus por tudo, sim, absolutamente TUDO!
Encostei no canteiro central e fiquei trotando no lugar, para esperar o senhorzinho enquanto observava, novamente, a expressão dos corredores. Por ser final de uma longa subida, a atitude dos corredores era bem mais variada do que lá no começo. Alguns sorriam vitoriosos mesmo ofegantes, outros vinham derrotados, caminhando cabisbaixos (eu tinha vontade de lembra-los de que já era uma grande vitória estarmos ali, a 8º C), outros vinham batendo papo e rindo, como se estivessem passeando (que inveja!). Vi, também, as duas camisetas amarelas passando, acompanhadas pelos respectivos guias. Será que a subida é menos pior quando não se enxerga? De certo, o senhorzinho laringectomizado chegaria muito bem, sabendo controlar o ritmo, a força, a respiração, a empolgação. Tantas outras subidas e descidas da vida que ele já deve ter vencido!
Fiquei divagando, me lembrando de alguns pacientes meus, dos sofrimentos e superações de cada um, os Rubem-Bertas da vida de cada um... E eis que, putz, deixei o senhorzinho escapar! Quando me dei conta, ele já passava por mim, sorrindo e fazendo tchauzinho. Droga, perdi uma foto planejada, aliás, A FOTO do meu painel! Não há verdade maior em fotografia de esporte, do que “Fotografou? Não? Então, dançou!”... Mas vislumbrei uma outra verdade que me deixou radiante: acho que Deus quer me presentear um amigo!
Foto perdida, foto esquecida. Tenta-se manter a cena gravada na memória, e pronto. Mas ali, nem era caso tão perdido assim. Ainda havia a volta, pelo outro lado da avenida, com o mesmo termômetro. Então, tive de me apressar de novo. Desta vez, não mais para ir atrás da minha hora e dez minutos, mas para me posicionar estrategicamente junto do termômetro na outra mão da avenida.
Não consegui fazer “a foto ideal” porque o senhorzinho vinha correndo na outra ponta da avenida, longe do termômetro, mas ainda assim consegui incluir no mesmo enquadramento o senhorzinho e os 8ºC. De qualquer forma, já imaginei a foto bem ampliada, em frente à minha cama, gritando todas as manhãs para mim, “Sunao, cria vergonha nessa cara!” Hahaha, vai ser o máximo!

Nessa altura, a cara de pau já dominava totalmente a minha existência encharcada de suor. Imaginava abraçar aquela criatura tão especial depois da linha de chegada e tentar demonstrar o quanto eu estava grata por aquele exemplo. Exemplo de – palavra batida e até meio banalizada – superação. Mais do que isso, um exemplo vivo da alegria de viver.
Eu queria ver de perto o senhorzinho cruzando a linha de chegada. E fotografar, claro. Então, acelerei pela última vez nos poucos quilômetros restantes, para me armar com o meu celular (droga, cadê a minha Nikon?) e toda a atenção do mundo, logo depois do pórtico de chegada. Em geral, a organização da corrida não permite que quem terminou a prova fique zanzando próximo ao pórtico de chegada, para evitar tumulto dos corredores que vem chegando. Mas ali já estava tranquilo, com a chegada mais espaçada dos atletas. E então arrisquei, berrando para um dos rapazes do staff: “Dá licença, moço! Eu preciso, você entende? Eu PRE-CI-SO!!!! fotografar a chegada de uma pessoa muito, muuuuuito especial!”. Fui convincente. Ele me disse que não havia problema, se eu não atrapalhasse o pessoal que estava chegando.
Deu certo. Assisti de frente o senhorzinho cruzando a linha de chegada! De braços abertos, mordendo a ponta de seu babadorzinho azul. Um vencedor chegando! Aliás, quantas vezes já não terá vencido na corrida da vida, nos anos que, pelo que imagino pela cor de seus cabelos, não devem ser pouca coisa...


Corri ao seu encontro, saboreando uma das emoções mais gostosas que já experimentei. A indescritível e indiscutível alegria de viver, resumida em dez quilômetros de corrida, uma hora e pouco de vida (me desculpe, Professor Alexandre, foi um pouco mais do que 01:10...). Nunca foi tão verdadeiro: corrida e alegria da vida, minha rima preferida.
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*/** Para quem pensa que essas duas palavras são palavrões: laringectomia é a retirada cirúrgica da laringe, parte da garganta onde estão localizadas as pregas (cordas) vocais. Em geral, a doença que leva à necessidade desse tipo de cirurgia é o câncer. Sem a laringe, perde-se a continuidade da boca e nariz com a traqueia e a respiração é feita diretamente pela traqueia, que fica com uma abertura na parte baixa do pescoço – a traqueostomia. A alimentação permanece normal e a fala pode ser reabilitada por meio de uma pequena prótese inserida entre a traqueia e o esôfago.


Sr. Coryntho, "o senhorzinho". Corredor desde 1997, laringectomizado em 2007, vencedor sempre.


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quinta-feira, 22 de setembro de 2011

DEVAGAR...

Mal comecei o blog, estou meio devagar. Devagar para correr, devagar para divagar. Aliás, apesar do título ser sugestivo, neste blog não pretendo falar só de corrida. Afinal, eu não corro tanto assim. Divago muito mais.
Tem dias em que a correria é tanta, que não consigo correr, nem divagar (nem comer, nem dormir, nem fazer xixi). Mas nem tem sido tanta correria assim... Estou devagar mesmo.



quarta-feira, 14 de setembro de 2011

AS DUAS TRIBOS DE RUA – Divagações durante a Corrida do Centro Histórico

Como adoro correr e divagar, nada melhor que inaugurar este blog escrevendo sobre uma corrida que corri devagar e sempre, divagando sempre. Foi a 16a Corrida do Centro Histórico, organizada pela Corpore (07/08/2011). Esta é uma das corridas mais charmosas de S. Paulo, por percorrer o velho centrão, dando oportunidade (se sobrar fôlego) de curtir os clássicos cartões postais – Viaduto do Chá, Teatro Municipal, Av. S. João, Viaduto Sta. Ifigênia, Pátio do Colégio, Praça da Sé...,  para citar alguns.
Graças a essa peculiaridade geográfica, existe também uma boa chance de perceber o contraste entre duas grandes tribos de rua – os moradores e os corredores. Ambos, diga-se de passagem, em número crescente a cada ano.
Enquanto a maioria dos moradores, por falta de opção, ainda se mantinha no (des?)conforto de todas as cobertas possíveis, os corredores tinham optado por levantar muito cedo e sair de casa com pouca roupa. Alguns moradores já acordados permaneciam sentados semi enrolados em seus trapos, observando desfocadamente os milhares de pares de joelhos, pernas e tênis que, em diferentes velocidades, cruzavam seu campo de visão. Onde fica a ouvidoria para se reclamar contra esses invasores que perturbam a paz da manhã quase fria de um belo domingo?
A cena mais bonita estava ali por volta do km 5. Daquelas, de quase fazer inveja, ou no mínimo te deixar pensando... Em primeiro plano: uma larga calçada atapetada de ipê roxo. Um luxuoso tapete de flores mortas, de um pink muito vivo (porque o ipê roxo não é roxo, certo?). Segundo plano, onde a calçada encontra a muretinha do jardim: um cobertor de cor indefinível formando um “charuto” estendido sobre o tapete pink – imaginei haver no mínimo um ser humano ali dentro; com sorte, um ser humano e outro canino. Próximo dele, a árvore de ipê roxo, com as flores pink – a metade que ainda não caiu. Terceiro plano, lá no fundo, visível por entre as flores pink do ipê roxo: a Catedral da Sé, secular e majestosa, iluminada pelo sol do amanhecer, aquele que promete um dia quente e lindo.
Quarto e último plano, o meu plano mental: não seria lindo, aliás, acordar todos os dias num lugar desses, lá pelas 11 da manhã, sem despertador – e sem a menor noção do odiável modo snooze -, com o sol batendo na cara, no ipê, na catedral? E eu, que já suo a camisa durante a semana toda, aqui, suando de novo em pleno domingo, 8 e pouco da manhã (pode-se dizer madrugada, vai...), ofegante, correndo feito louca, em nome da saúde, da satisfação pessoal, da superação, ou qualquer outro motivo mais nobre que não me ocorre no momento...
Por outro lado, vejamos: eu já lavei o rosto, escovei os dentes, tomei um baita café da manhã, fui ao banheiro... tudo sem tapete pink nem catedral nem sol na cara. E sem a menor consciência de quão feliz eu sou por poder fazer tudo isso todos os dias sem a menor consciência. Para o indivíduo enroladinho no cobertor sobre o suntuoso tapete pink – e para todos os colegas da mesma tribo, deve ser muito suado fazer metade disso, dia após dia.
Faltavam mais quatro quilômetros. Continuei, esbaforida, suando a minha linda camiseta preta de manga longa, convencida de que sou muito mais feliz por pertencer a esta tribo e não àquela.